De fato, o Brasil se tornou referência para os países de colonização portuguesa e não seria diferente com Cabo Verde. Além dos postulados freyrianos podemos citar a influência de uma série de literatos brasileiros como, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Manuel Bandeira. Estes brasileiros eram de extrema relevância para os intelectuais cabo-verdianos em torno da Claridade. Além disso, alguns acontecimentos como a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a emergência do regionalismo do Nordeste brasileiro, sobretudo a partir de 1925/30, foram influências marcantes na literatura produzida nos espaços de colonização lusitana em África.
Especificamente em Cabo Verde os literatos claridosos notaram as semelhanças paisagísticas e ambientais com o Nordeste brasileiro, portanto, logo a literatura regionalista se tornou uma inspiração para eles. Daí as obras claridosas giravam em torno da valorização da cultura popular e dos regionalismos, mas também da exposição do drama local causado pelas estiagens. Além de Gilberto Freyre, segundo o sociólogo cabo-verdiano Claudio Furtado, o historiador Sérgio Buarque de Holanda e sua interpretação do Brasil também serviu de influência. O diplomata e escritor Ribeiro Couto também já chegou a ser citado por membros da Claridade em algumas entrevistas. São provas de que há uma longa relação histórica entre Brasil e Cabo Verde e que muito ainda precisa ser estudado sobre.
Boa noite!
Curso
História
João Vitor dos Santos e Santos
2 anos atrás
Ao final do seu resumo você afirma que na década de 90 novas elites surgem e retratam Cabo Verde como uma nação sem conflitos raciais. Poderia explicar um pouco mais sobre que elite seria essa? Quais elites eram as anteriores? E onde a claridade se encontra nesse jogo político?
Boa noite!
Ao longo do século XX a sociedade cabo-verdiana vai passar por diversas mudanças, principalmente a partir de 1975, quando finalmente a independência é conquistada. Alguns especialistas discorrem sobre as alterações que ocorrem a partir desse período, Leila Hernandez e Carlos dos Anjos afirmam que inicialmente o governo é liderado por uma elite ligada aos ideais socialistas, isto é, entre os anos 1975-85. Durante esse momento os principais intelectuais da Claridade são jogados para segundo plano, eles inclusive chegam a ser acusados de aliados do antigo sistema colonial português. Porém a partir de 1985 o quatro político passa por alterações paulatinas. Neste momento um grupo ligado ao liberalismo tende a assumir cargos administrativos, eles possuem grande interesse em diminuir a influência dos socialistas, a partir daí passam a defender que a luta pela independência teria começado a partir de 1936 quando a Claridade foi criada. Segundo essa narrativa os intelectuais claridosos teriam sido precursores da identidade nacional antes dos socialistas de 1960-70. A partir de 1990, a elite liberal ganha mais espaço político e passa a apostar ainda mais na defesa do grupo Claridade. O sistema de ensino e as instituições oficiais do país passam a ensinar e reconhecer os claridosos como cânones.
Curso
História
Laura Luiza Silva e Silva
2 anos atrás
Você abordou o discurso de diferenciação da população cabo-verdiana dos demais africanos. Seriam os de Cabo Verde cidadãos enquanto os demais africanos seriam indígenas. Poderia explicar melhor como se constituía essa diferença?
Sim, havia uma tentativa de diferenciar Cabo Verde das outras colônias em África, isso aconteceu por meio da criação de narrativas que elegiam os cabo-verdianos como sendo sujeitos mais cultos e inteligentes, enquanto os moçambicanos, angolanos e guineenses eram os supostos incivilizados. O império lusitano dividia as populações de África em alguns grupos: 1) os indígenas; 2) os assimilados e 3) cidadãos.
Os indígenas eram os membros dos diversos grupos étnicos nativos do continente africano, estes eram sempre considerados sujeitos inferiores que deveriam, segundo o discurso português, se adequar as normas ocidentais, daí surge o processo de assimilação, este consistia em fazer com que os nativos assumissem práticas lusitanas consideradas mais evoluídas.O historiador moçambicano José Luís Cabaço fala a respeito do estatuto do assimilado que elencava pontos a serem seguidos pelos nativos, sendo eles: ter mais de 18 anos; falar corretamento a língua portuguesa; exercer profissão que possibilitasse o sustento próprio e da família; ter bom comportamento e não ter se negado a servir militarmente.
Esse estatuto era importante em territórios considerados incivilizados como Angola, Moçambique e Guiné Bissau, pois antes da chegada de Portugal já havia diversos grupos nativos consolidados. Enquanto em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, onde os territórios são descritos como desabitados (mas há controversas a respeito disso) surgiu um discurso de defesa da cidadania dos povos desses dois arquipélagos. Eles supostamente teriam se formado a partir da colonização portuguesa e por meio do processo de mestiçagem teriam desenvolvido uma população superior, portanto cidadã do império. A categoria de cidadãos não precisava seguir o estatuto do assimilado e em tese deveriam ser tratados de forma igualitária se comparados com os metropolitanos, mas na prática isso não ocorria. Essa diferenciação entre nativos, assimilados e cidadãos era mais uma tática portuguesa que consistia em dividir para dominar.
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História
Lucas Póvoas
2 anos atrás
Parabéns pelo trabalho, muito interessante a forma como conduziu sua pesquisa. Tenho certeza que conseguirá mais resultados excelentes daqui para frente.
É difícil chegar a um consenso, pois alguns trabalhos apontam a claridade como um grupo de resistência ao Estado Novo português, outros afirmam que os claridosos foram cooptados pelo salazarismo, mas durante o processo de análise tentamos fugir de visões muito radicais. Então, é fato que a Claridade não desagradava o regime português porque este permitiu que a revista fosse publicada de 1936 a 1960, de forma que as suas produções em defesa do discurso de mestiçagem iam de encontro com os planos lusitanos. Outras publicações como a Revista Certeza e Suplemento Cultural foram censuradas pela ditadura portuguesa.
Entretanto, durante a análise podemos notar que algumas produções, sobretudo os poemas, vez ou outra problematizavam o contexto social local, tendo como centro as estiagens, a fome e a desigualdade. Em certo momento é possível notar também um desconforto com a censura e a ausência de liberdades individuais, onde os Estados Unidos da América até mesmo aparece como um país modelo a ser seguido. Isso demonstra que talvez a Claridade não concordasse por completo com o regime do Estado Novo. Então podemos pincelar o posicionamento destes intelectuais como sendo orgulhosos por participarem do império lusitano, levando em conta que Cabo Verde era uma colônia desde 1460, mas que eles não concebiam o salazarismo, a partir de 1933, como algo a ser louvado. Assim como não era fácil tecer críticas a um regime que eliminava qualquer ameaça a si, então cautela era o que os intelectuais deveriam ter.
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História
Ana Lídia Furtado
2 anos atrás
Excelente trabalho, Igor. Meus parabéns! Além de Baltasar Lopes e os outros nomes citados, poderia me dar referências de outros intelectuais que abordem sobre as marcas e os processos da construção da criolidade caboveridiana?
Existem diversos intelectuais cabo-verdianos que estavam pensando a mestiçagem, porém cada um vai abordar de uma forma muito única. Por exemplo, para alguns estudiosos, O Escravo, considerado o primeiro romance de Cabo Verde publicado, em 1856, já trazia consigo alguns elementos em defesa de uma ideia de crioulidade. Teria José Evaristo de Almeida dado a entender, por meio de tímidos diálogos entre as línguas crioula e portuguesa, que no espaço das ilhas de Cabo Verde estaria a se formar uma sociedade mestiça. É claro que isso não é um consenso, sendo que esse romance se enquadra mais na literatura nativista (séc. XIX), enquanto a claridade inaugura a corrente modernista (séc. XX). Já a partir da Claridade essa discussão em torno da mestiçagem acontece mais intensamente, inclusive entre críticos da literatura produzida por eles, como, por exemplo, Onésimo Silveira. Ele foi um importante intelectual cabo-verdiano que infelizmente faleceu este ano, Silveira foi contemporâneo dos claridosos e teceu algumas críticas a eles, mas também defendia a ideia de crioulidade cabo-verdiana. É importante que você tenha em mente que foi apenas a partir da geração de Amílcar Cabral, entre os anos 1950-60, que a ideia de mestiçagem seria vista de forma negativa, os intelectuais dessa geração tendiam a se afastar do discurso de crioulidade.
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História
Ana Caroline Silva Caldas
2 anos atrás
Parabéns pelo trabalho! É excelente!
Muitos portugueses até o início do século XX detestavam a ideia de mestiçagem, porque era uma possível ameaça a ideia de pureza racial. Então por que elencar o mestiço como perfil geral do cabo-verdiano não incomodava Portugal?
Sim, muitos europeus tinham verdadeiro horror a ideia de miscigenação, pois acreditavam que a “raça” branca deveria ser protegida. Porém, a partir do contexto de pós Segunda Guerra Mundial, houve uma grande pressão para que as potências descolonizassem os territórios em África, mas Portugal decidiu fazer o contrário e empreendeu uma série de práticas para manter as colônias, entre elas o discurso em defesa da mestiçagem.
Dessa forma, Portugal passou a afirmar que sua colonização desenvolvia os espaços colonizados e que a relação entre eles era como de um pai para com os filhos. O mestiço passa a ser a prova de uma suposta “confraternização” entre lusitanos e nativos. Gilberto Freyre foi utilizado como um grande agente em defesa dessa narrativa, a sua teoria luso-tropicalista servia como base para este argumento. Para o historiador Sérgio Neto, Cabo Verde se tornou a partir de 1940 a colônia modelo, pois, no arquipélago supostamente teria se formado uma população crioula fruto da “boa” colonização portuguesa. Mas isso era apenas um argumento dos colonizadores temerosos de perder o que consideravam propriedades portuguesas.
De modo que esse discurso em defesa da mestiçagem era uma forma de manter as colônias, o império não necessariamente buscava valorizar esses espaços e suas culturas nativas. Entretanto, essa política não agradou a todos, em Portugal existiam grupos que rejeitavam a ideia de miscigenação, inclusive em setores conservadores do próprio governo.
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História
Viviane de Oliveira Barbosa
2 anos atrás
Boa tarde Igor,
parabéns pela primorosa pesquisa!
Fico me perguntando se aparecem indícios do discurso assimilacionista entre os Claridosos que foi motivado pelo Estado português durante a colonização. Há alguma aproximação muito evidente entre o que dizia o modelo de colonização no Ultramar e o discurso defendido por esses intelectuais? Como isso aparece? Pode existir, ainda, um intuito de desracialização por parte desses intelectuais em suas produções. Esta última questão talvez seja para você refletir um pouco mais.
Agradeço!
Boa noite, professora. Obrigado pelas questões pertinentes.
Conseguimos perceber convergências entre a política assimilacionista de Portugal e a narrativa dos claridosos principalmente nos ensaios críticos, sobretudo os de autoria de Baltasar Lopes e Teixeira de Sousa, nessas produções há uma maior valorização de um suposto legado português, a ideia central é quase sempre o processo de mestiçagem, assim como é notável um certo orgulho de fazerem parte do império lusitano.Não há uma crítica ao colonialismo em si, eles parecem aceitar bem a ideia de que Portugal seria uma nação paternalista que teria criado um ambiente propício para o encontro de sujeitos etnicamente diferentes e, portanto, seria uma potência colonizadora diferente das demais.
Um dos pontos de maior evidência é quando Teixeira de Sousa afirma que em Cabo Verde o mestiço se torna branco a partir do momento que ele possui bens materiais, é a ideia vendida por Portugal de que em suas colônias não há discriminação racial, pois os lusitanos seriam esse povo sem preconceitos. Baltasar Lopes também afirma que existe uma mobilidade social em Cabo Verde e defende a formação de uma unidade cultural tendo como fio condutor o império português, essas narrativas vão de encontro com o discurso assimilacionista porque definem Portugal como um pai que desenvolve e cuida das “extensões” do mundo luso no Ultramar. Pois um dos pilares do discurso metropolitano nesse momento é que Portugal não possui colônias, mas sim províncias ultramarinas. Porém isso é apenas uma tentativa de mascarar a violência do sistema colonialista em África.
Essa ideia em torno da mestiçagem e da defesa de que há uma mobilidade social contribuiram bastante para um pensamento problemático de que não há discriminação racial, é como se todos fossem mestiços e portanto não possuíria espaço para que contradições no tocante a questão da raça se formassem. Mas aí é que mora o perigo, pois, como o cabo-verdiano José Carlos Gomes dos Anjos afirma, o próprio discurso da mestiçagem já é preconceituoso porque ele tenta diluir a herança africana e valorizar a herança portuguesa. Então quando se defende a miscigenação não quer dizer que a mistura acontece de forma igualitária, mas sempre o branco é privilegiado na formação do mestiço e é por isso que os intelectuais cabo-verdianos defendiam que os sujeitos do arquipélago seriam superiores aos povos do continente, pois como mestiços tinham o “elemento branco” que os diferenciava dos nativos africanos. Em síntese o discurso da mestiçagem possibilitou que os cabo-verdianos se enxergassem não como africanos, mas sim como euro-africanos.
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História
Joyce Maria Castro Vasconcelos
2 anos atrás
Parabéns pela pesquisa!
Gostaria de saber qual a relevância da Claridade hoje em dia em Cabo Verde? E qual a contribuição desses intelectuais para a formação da identidade nacional do país?
Atualmente, os intelectuais em torno da revista, principalmente Baltasar Lopes, são considerados cânones literários, o ensino a respeito deles está presente desde a educação básica, também existem eventos e premiações que fazem referência ao grupo. De modo geral a Claridade é atrelada a gênese da literatura cabo-verdiana e consequentemente a ideia de identidade nacional. Portanto, na atualidade os claridosos possuem grande reconhecimento no arquipélago.
A defesa da possível contribuição claridosa para a formação da identidade nacional é algo que ganha força a partir de 1990, quando grupos liberais assumem o controle do Estado e erguem a Claridade como precursora da ideia de Nação cabo-veridiana. Já durante o périodo de veiculação da revista, entre os anos 1936-1960, é difícil dizer qual foi o real impacto das ideias do grupo na sociedade da época. O que podemos afirmar é que eles possuíam um projeto específico que visava demarcar a possível maneira de ser cabo-verdiano.
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História
Francisco ramon dos santos lima
2 anos atrás
Parabéns pela excelente pesquisa!
Pelo que entendi Gilberto Freyre teve grande influência em Cabo Verde, gostaria de saber qual o impacto da teoria dele nos demais espaços de colonização portuguesa?
Portugal tentou exportar a teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre para todos os espaços coloniais, porém em Cabo Verde essa teoria parece ter tido mais impacto. O historiador moçambicano José Luís Cabaço afirma que as ideias de Freyre tiveram praticamente nenhum impacto em Moçambique, Angola e Guiné. Nestes espaços a influência brasileira era sentida por meio das obras dos modernistas e regionalistas do Nordeste, mas não pela teoria de Gilberto Freyre.
Porém Portugal patrocinou diversas viagens de Freyre pelas colônias, com isso almejava divulgar a teoria luso-tropical e ampliar sua influência. O sociólogo chegou a publicar livros sobre as viagens, sendo eles “um brasileiro em terras portuguesas” e ” aventura e rotina”.
Além de Gilberto Freyre, o Brasil teria contribuído de outras formas para as produções literárias de Cabo Verde?
De fato, o Brasil se tornou referência para os países de colonização portuguesa e não seria diferente com Cabo Verde. Além dos postulados freyrianos podemos citar a influência de uma série de literatos brasileiros como, por exemplo, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo e Manuel Bandeira. Estes brasileiros eram de extrema relevância para os intelectuais cabo-verdianos em torno da Claridade. Além disso, alguns acontecimentos como a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a emergência do regionalismo do Nordeste brasileiro, sobretudo a partir de 1925/30, foram influências marcantes na literatura produzida nos espaços de colonização lusitana em África.
Especificamente em Cabo Verde os literatos claridosos notaram as semelhanças paisagísticas e ambientais com o Nordeste brasileiro, portanto, logo a literatura regionalista se tornou uma inspiração para eles. Daí as obras claridosas giravam em torno da valorização da cultura popular e dos regionalismos, mas também da exposição do drama local causado pelas estiagens. Além de Gilberto Freyre, segundo o sociólogo cabo-verdiano Claudio Furtado, o historiador Sérgio Buarque de Holanda e sua interpretação do Brasil também serviu de influência. O diplomata e escritor Ribeiro Couto também já chegou a ser citado por membros da Claridade em algumas entrevistas. São provas de que há uma longa relação histórica entre Brasil e Cabo Verde e que muito ainda precisa ser estudado sobre.
Boa noite!
Ao final do seu resumo você afirma que na década de 90 novas elites surgem e retratam Cabo Verde como uma nação sem conflitos raciais. Poderia explicar um pouco mais sobre que elite seria essa? Quais elites eram as anteriores? E onde a claridade se encontra nesse jogo político?
Boa noite!
Ao longo do século XX a sociedade cabo-verdiana vai passar por diversas mudanças, principalmente a partir de 1975, quando finalmente a independência é conquistada. Alguns especialistas discorrem sobre as alterações que ocorrem a partir desse período, Leila Hernandez e Carlos dos Anjos afirmam que inicialmente o governo é liderado por uma elite ligada aos ideais socialistas, isto é, entre os anos 1975-85. Durante esse momento os principais intelectuais da Claridade são jogados para segundo plano, eles inclusive chegam a ser acusados de aliados do antigo sistema colonial português. Porém a partir de 1985 o quatro político passa por alterações paulatinas. Neste momento um grupo ligado ao liberalismo tende a assumir cargos administrativos, eles possuem grande interesse em diminuir a influência dos socialistas, a partir daí passam a defender que a luta pela independência teria começado a partir de 1936 quando a Claridade foi criada. Segundo essa narrativa os intelectuais claridosos teriam sido precursores da identidade nacional antes dos socialistas de 1960-70. A partir de 1990, a elite liberal ganha mais espaço político e passa a apostar ainda mais na defesa do grupo Claridade. O sistema de ensino e as instituições oficiais do país passam a ensinar e reconhecer os claridosos como cânones.
Você abordou o discurso de diferenciação da população cabo-verdiana dos demais africanos. Seriam os de Cabo Verde cidadãos enquanto os demais africanos seriam indígenas. Poderia explicar melhor como se constituía essa diferença?
Sim, havia uma tentativa de diferenciar Cabo Verde das outras colônias em África, isso aconteceu por meio da criação de narrativas que elegiam os cabo-verdianos como sendo sujeitos mais cultos e inteligentes, enquanto os moçambicanos, angolanos e guineenses eram os supostos incivilizados. O império lusitano dividia as populações de África em alguns grupos: 1) os indígenas; 2) os assimilados e 3) cidadãos.
Os indígenas eram os membros dos diversos grupos étnicos nativos do continente africano, estes eram sempre considerados sujeitos inferiores que deveriam, segundo o discurso português, se adequar as normas ocidentais, daí surge o processo de assimilação, este consistia em fazer com que os nativos assumissem práticas lusitanas consideradas mais evoluídas.O historiador moçambicano José Luís Cabaço fala a respeito do estatuto do assimilado que elencava pontos a serem seguidos pelos nativos, sendo eles: ter mais de 18 anos; falar corretamento a língua portuguesa; exercer profissão que possibilitasse o sustento próprio e da família; ter bom comportamento e não ter se negado a servir militarmente.
Esse estatuto era importante em territórios considerados incivilizados como Angola, Moçambique e Guiné Bissau, pois antes da chegada de Portugal já havia diversos grupos nativos consolidados. Enquanto em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, onde os territórios são descritos como desabitados (mas há controversas a respeito disso) surgiu um discurso de defesa da cidadania dos povos desses dois arquipélagos. Eles supostamente teriam se formado a partir da colonização portuguesa e por meio do processo de mestiçagem teriam desenvolvido uma população superior, portanto cidadã do império. A categoria de cidadãos não precisava seguir o estatuto do assimilado e em tese deveriam ser tratados de forma igualitária se comparados com os metropolitanos, mas na prática isso não ocorria. Essa diferenciação entre nativos, assimilados e cidadãos era mais uma tática portuguesa que consistia em dividir para dominar.
Parabéns pelo trabalho, muito interessante a forma como conduziu sua pesquisa. Tenho certeza que conseguirá mais resultados excelentes daqui para frente.
Agradeço o comentário gentil, muito obrigado!
Muito interessante sua pesquisa, Igor. Qual era o posicionamento da Claridade referente a ditadura do Estado Novo?
É difícil chegar a um consenso, pois alguns trabalhos apontam a claridade como um grupo de resistência ao Estado Novo português, outros afirmam que os claridosos foram cooptados pelo salazarismo, mas durante o processo de análise tentamos fugir de visões muito radicais. Então, é fato que a Claridade não desagradava o regime português porque este permitiu que a revista fosse publicada de 1936 a 1960, de forma que as suas produções em defesa do discurso de mestiçagem iam de encontro com os planos lusitanos. Outras publicações como a Revista Certeza e Suplemento Cultural foram censuradas pela ditadura portuguesa.
Entretanto, durante a análise podemos notar que algumas produções, sobretudo os poemas, vez ou outra problematizavam o contexto social local, tendo como centro as estiagens, a fome e a desigualdade. Em certo momento é possível notar também um desconforto com a censura e a ausência de liberdades individuais, onde os Estados Unidos da América até mesmo aparece como um país modelo a ser seguido. Isso demonstra que talvez a Claridade não concordasse por completo com o regime do Estado Novo. Então podemos pincelar o posicionamento destes intelectuais como sendo orgulhosos por participarem do império lusitano, levando em conta que Cabo Verde era uma colônia desde 1460, mas que eles não concebiam o salazarismo, a partir de 1933, como algo a ser louvado. Assim como não era fácil tecer críticas a um regime que eliminava qualquer ameaça a si, então cautela era o que os intelectuais deveriam ter.
Excelente trabalho, Igor. Meus parabéns! Além de Baltasar Lopes e os outros nomes citados, poderia me dar referências de outros intelectuais que abordem sobre as marcas e os processos da construção da criolidade caboveridiana?
Existem diversos intelectuais cabo-verdianos que estavam pensando a mestiçagem, porém cada um vai abordar de uma forma muito única. Por exemplo, para alguns estudiosos, O Escravo, considerado o primeiro romance de Cabo Verde publicado, em 1856, já trazia consigo alguns elementos em defesa de uma ideia de crioulidade. Teria José Evaristo de Almeida dado a entender, por meio de tímidos diálogos entre as línguas crioula e portuguesa, que no espaço das ilhas de Cabo Verde estaria a se formar uma sociedade mestiça. É claro que isso não é um consenso, sendo que esse romance se enquadra mais na literatura nativista (séc. XIX), enquanto a claridade inaugura a corrente modernista (séc. XX). Já a partir da Claridade essa discussão em torno da mestiçagem acontece mais intensamente, inclusive entre críticos da literatura produzida por eles, como, por exemplo, Onésimo Silveira. Ele foi um importante intelectual cabo-verdiano que infelizmente faleceu este ano, Silveira foi contemporâneo dos claridosos e teceu algumas críticas a eles, mas também defendia a ideia de crioulidade cabo-verdiana. É importante que você tenha em mente que foi apenas a partir da geração de Amílcar Cabral, entre os anos 1950-60, que a ideia de mestiçagem seria vista de forma negativa, os intelectuais dessa geração tendiam a se afastar do discurso de crioulidade.
Parabéns pelo trabalho! É excelente!
Muitos portugueses até o início do século XX detestavam a ideia de mestiçagem, porque era uma possível ameaça a ideia de pureza racial. Então por que elencar o mestiço como perfil geral do cabo-verdiano não incomodava Portugal?
Sim, muitos europeus tinham verdadeiro horror a ideia de miscigenação, pois acreditavam que a “raça” branca deveria ser protegida. Porém, a partir do contexto de pós Segunda Guerra Mundial, houve uma grande pressão para que as potências descolonizassem os territórios em África, mas Portugal decidiu fazer o contrário e empreendeu uma série de práticas para manter as colônias, entre elas o discurso em defesa da mestiçagem.
Dessa forma, Portugal passou a afirmar que sua colonização desenvolvia os espaços colonizados e que a relação entre eles era como de um pai para com os filhos. O mestiço passa a ser a prova de uma suposta “confraternização” entre lusitanos e nativos. Gilberto Freyre foi utilizado como um grande agente em defesa dessa narrativa, a sua teoria luso-tropicalista servia como base para este argumento. Para o historiador Sérgio Neto, Cabo Verde se tornou a partir de 1940 a colônia modelo, pois, no arquipélago supostamente teria se formado uma população crioula fruto da “boa” colonização portuguesa. Mas isso era apenas um argumento dos colonizadores temerosos de perder o que consideravam propriedades portuguesas.
De modo que esse discurso em defesa da mestiçagem era uma forma de manter as colônias, o império não necessariamente buscava valorizar esses espaços e suas culturas nativas. Entretanto, essa política não agradou a todos, em Portugal existiam grupos que rejeitavam a ideia de miscigenação, inclusive em setores conservadores do próprio governo.
Boa tarde Igor,
parabéns pela primorosa pesquisa!
Fico me perguntando se aparecem indícios do discurso assimilacionista entre os Claridosos que foi motivado pelo Estado português durante a colonização. Há alguma aproximação muito evidente entre o que dizia o modelo de colonização no Ultramar e o discurso defendido por esses intelectuais? Como isso aparece? Pode existir, ainda, um intuito de desracialização por parte desses intelectuais em suas produções. Esta última questão talvez seja para você refletir um pouco mais.
Agradeço!
Boa noite, professora. Obrigado pelas questões pertinentes.
Conseguimos perceber convergências entre a política assimilacionista de Portugal e a narrativa dos claridosos principalmente nos ensaios críticos, sobretudo os de autoria de Baltasar Lopes e Teixeira de Sousa, nessas produções há uma maior valorização de um suposto legado português, a ideia central é quase sempre o processo de mestiçagem, assim como é notável um certo orgulho de fazerem parte do império lusitano.Não há uma crítica ao colonialismo em si, eles parecem aceitar bem a ideia de que Portugal seria uma nação paternalista que teria criado um ambiente propício para o encontro de sujeitos etnicamente diferentes e, portanto, seria uma potência colonizadora diferente das demais.
Um dos pontos de maior evidência é quando Teixeira de Sousa afirma que em Cabo Verde o mestiço se torna branco a partir do momento que ele possui bens materiais, é a ideia vendida por Portugal de que em suas colônias não há discriminação racial, pois os lusitanos seriam esse povo sem preconceitos. Baltasar Lopes também afirma que existe uma mobilidade social em Cabo Verde e defende a formação de uma unidade cultural tendo como fio condutor o império português, essas narrativas vão de encontro com o discurso assimilacionista porque definem Portugal como um pai que desenvolve e cuida das “extensões” do mundo luso no Ultramar. Pois um dos pilares do discurso metropolitano nesse momento é que Portugal não possui colônias, mas sim províncias ultramarinas. Porém isso é apenas uma tentativa de mascarar a violência do sistema colonialista em África.
Essa ideia em torno da mestiçagem e da defesa de que há uma mobilidade social contribuiram bastante para um pensamento problemático de que não há discriminação racial, é como se todos fossem mestiços e portanto não possuíria espaço para que contradições no tocante a questão da raça se formassem. Mas aí é que mora o perigo, pois, como o cabo-verdiano José Carlos Gomes dos Anjos afirma, o próprio discurso da mestiçagem já é preconceituoso porque ele tenta diluir a herança africana e valorizar a herança portuguesa. Então quando se defende a miscigenação não quer dizer que a mistura acontece de forma igualitária, mas sempre o branco é privilegiado na formação do mestiço e é por isso que os intelectuais cabo-verdianos defendiam que os sujeitos do arquipélago seriam superiores aos povos do continente, pois como mestiços tinham o “elemento branco” que os diferenciava dos nativos africanos. Em síntese o discurso da mestiçagem possibilitou que os cabo-verdianos se enxergassem não como africanos, mas sim como euro-africanos.
Parabéns pela pesquisa!
Gostaria de saber qual a relevância da Claridade hoje em dia em Cabo Verde? E qual a contribuição desses intelectuais para a formação da identidade nacional do país?
Atualmente, os intelectuais em torno da revista, principalmente Baltasar Lopes, são considerados cânones literários, o ensino a respeito deles está presente desde a educação básica, também existem eventos e premiações que fazem referência ao grupo. De modo geral a Claridade é atrelada a gênese da literatura cabo-verdiana e consequentemente a ideia de identidade nacional. Portanto, na atualidade os claridosos possuem grande reconhecimento no arquipélago.
A defesa da possível contribuição claridosa para a formação da identidade nacional é algo que ganha força a partir de 1990, quando grupos liberais assumem o controle do Estado e erguem a Claridade como precursora da ideia de Nação cabo-veridiana. Já durante o périodo de veiculação da revista, entre os anos 1936-1960, é difícil dizer qual foi o real impacto das ideias do grupo na sociedade da época. O que podemos afirmar é que eles possuíam um projeto específico que visava demarcar a possível maneira de ser cabo-verdiano.
Parabéns pela excelente pesquisa!
Pelo que entendi Gilberto Freyre teve grande influência em Cabo Verde, gostaria de saber qual o impacto da teoria dele nos demais espaços de colonização portuguesa?
Portugal tentou exportar a teoria luso-tropicalista de Gilberto Freyre para todos os espaços coloniais, porém em Cabo Verde essa teoria parece ter tido mais impacto. O historiador moçambicano José Luís Cabaço afirma que as ideias de Freyre tiveram praticamente nenhum impacto em Moçambique, Angola e Guiné. Nestes espaços a influência brasileira era sentida por meio das obras dos modernistas e regionalistas do Nordeste, mas não pela teoria de Gilberto Freyre.
Porém Portugal patrocinou diversas viagens de Freyre pelas colônias, com isso almejava divulgar a teoria luso-tropical e ampliar sua influência. O sociólogo chegou a publicar livros sobre as viagens, sendo eles “um brasileiro em terras portuguesas” e ” aventura e rotina”.